
A era do espetáculo familiar
Nos últimos anos, milhões de famílias passaram a documentar crianças em vídeos e lives que geram visualizações, seguidores e renda. O fenômeno — chamado por pesquisadores de sharenting ou kidfluencing — transforma rotinas íntimas em conteúdo com métricas e algoritmos, muitas vezes sem salvaguardas para a privacidade, o desenvolvimento emocional ou a remuneração justa dos menores.
Quando brincar vira roteiro e exposição
O problema não são apenas vídeos fofos: há relatos e estudos que mostram crianças pressionadas a performar, rotinas gravadas quase sem pausa e cenas que as expõem a comentários agressivos, assédio e riscos de segurança. Psicólogos alertam para efeitos sobre identidade, autoestima e consentimento — quase sempre comprometido quando o “sim” vem apenas do responsável legal.
Pais, audiência e economia da atenção
Para muitos pais, criar conteúdo virou fonte de renda ou negócio. Marcas e plataformas monetizam o alcance; algoritmos premiam conteúdo emocional e repetível — e crianças viram meio, não fim. Essa dinâmica incentiva a maximização da exposição, mesmo que isso comprometa direitos e bem-estar.
Legislação em marcha — exemplos e lacunas
Alguns governos já reagiram: estados dos EUA, como Illinois, aprovaram leis que exigem proteção financeira e aplicam regras semelhantes às de atores mirins. Propostas semelhantes aparecem em outros lugares, como Nova York, e defensores pedem direitos de exclusão e contas-trust para garantir que crianças recebam parte dos ganhos. Ainda assim, a cobertura legal é desigual, deixando lacunas significativas.
Consequências documentadas — casos que acendem o alerta
Casos recentes mostram que fama online pode esconder abuso, negligência e exploração financeira — quando a busca por audiência justifica práticas potencialmente danosas. Jovens que cresceram sob câmeras relatam perda de autonomia e traumas ligados a uma imagem que permanece eternamente online.
O que organizações internacionais recomendam
Agências como UNICEF e órgãos da ONU pedem políticas integradas: limitar a exposição comercial, oferecer ferramentas de remoção de conteúdo, educar pais e criar marcos legais que conciliem proteção infantil e liberdade familiar. As recomendações incluem proteção contra violência, preservação da privacidade e garantia de direitos econômicos.
Como os juízes e legisladores podem agir — propostas práticas
- Reconhecer conteúdo com crianças como trabalho protegido: aplicar regras semelhantes às do espetáculo — limites de horas, supervisão e garantia de parte da renda em trust fund.
- Direito de remoção e correção: permitir que a criança, ao atingir idade legal, solicite a exclusão de conteúdo gravemente invasivo.
- Obrigatoriedade de transparência financeira: exigir prestação de contas e divisão de receitas.
- Fiscalização digital e educação parental: capacitar órgãos de proteção ao menor para monitorar práticas e educar famílias sobre riscos e consentimento.
Repensando o valor da infância
Não se trata de proibir famílias de compartilhar memórias, mas de impedir que a busca por cliques transforme infância em produto. Regras claras podem equilibrar liberdade familiar, proteção econômica e o direito de toda criança a crescer longe da exploração.
Referências:
- UNICEF – Protecting Children From Violence and Exploitation in Relation to the Digital Environment
- Honey, I Monetized the Kids: Commercial Sharenting and Protecting… – Georgetown Law Journal (PDF)
- Protecting Children by Limiting the Right to Profit From ‘Sharenting’ – Vanderbilt / JETLAW (PDF)
- Projeto de lei em Nova York (S. 825) para proteger influenciadores mirins
- TechPolicy.Press – The Coming Wave of Child Influencer Regulation
- Business Insider – reportagem sobre regulamentação de ‘mommy bloggers’
- Artigo Springer – Child Labor in Social Media: Kidfluencers, Ethics of Care…
- UNICEF Innocenti – Protecting young digital citizens
- UNICEF – Tackling online violence against children
- Columbia Law (JLSP) – Expanding Publicity Rights to Protect Children in Monetized Social Media